quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Do discurso da “pobreza” ao investimento no “capital social” - por António Baptista



O discurso dominante sobre a realidade social portuguesa está estruturado sobre a “pobreza” e as problemáticas a ela associadas, procurando a sua definição conceptual e as interacções necessárias com os domínios onde pode ser reduzida, minimizada ou mesmo “erradicada” como se de uma patologia social se tratasse.
O pré requisito (ou preconceito) desta construção ideológica é a de que a pobreza é um fenómeno distinto das dinâmicas do desenvolvimento social global, com uma racionalidade própria e particular, estando associada ao sistema socioeconómico apenas como manifestação da crescente ineficiência global dos mecanismos produtores de equidade e redistribuição justa dos recursos.
A consequência lógica deste raciocínio é a de intensificar as medidas políticas correctivas deste desequilíbrio, acentuando o carácter redistributivo do sistema económico e social, transferindo recursos para uma esfera externa aos “mercados”- a esfera “social”.
Esta dicotomia gera a percepção e um discurso associado, de que a “pobreza” se verifica em identidades sociais específicas (vitimização ou diabolização conforme a perspectiva ideológica) e em contextos determinados e determinantes dessa mesma “pobreza”.
Estes grupos, territórios, identidades e indivíduos seriam então os receptores, de recursos que de forma mais ou menos assistencialista (ou paternalista) se esperaria a alteração das condições de partida com maior ou menor contributo para a sua própria capacitação e a das suas condições endógenas de mudança.


A abordagem do fenómeno consensualmente designado de “pobreza”, cujo conceito se pode definir como carência e consequente privação de recursos, no sentido do utilizado por Bruto da Costa (2008) e a exclusão social como seu corolário, é de tal modo unificadora que integra todas as dimensões da organização da vida em sociedade.
Esta visão sistémica expande a sua racionalidade conceptual a todos os subsistemas interdependentes e correlacionáveis dando-nos um quadro global onde se insere e enquadra a “pobreza”, como seu fio condutor e princípio explicativo.
O resultado é uma narrativa globalizadora que cria uma correspondência lógica entre as variáveis da “exclusão social” que se manifestam sob diversas formas pela carência e privação de recursos e um referencial comparativo de indicadores de “inclusão” que nos permite medir, em todos estes subsistemas, a distância a colmatar para erradicar a “pobreza”.
Nesta perspectiva a “pobreza”, ainda que traduzida na sua real complexidade, emerge como uma realidade homogénea e coerente que pode ser traduzida estatisticamente nas variáveis quantitativas de rendimento e qualitativas da percepção sobre o problema.
Poder-se-ia concluir que as políticas que incidissem na variável rendimento alterando os seus valores, gerando directamente rendimento através da redistribuição ou indirectamente através da “capacitação” para o acesso a redes sociais de suporte ou outros bens e serviços, se traduziriam da minimização da privação das possibilidades de inserção social. Dito de outro modo traduzir-se-iam na redução da pobreza.

Seria então estratégico intervir nos mecanismos de formação da consciência social da comunidade e sensibilização da opinião pública como factor de pressão para o acentuar de políticas redistributivas que aumentassem o volume de recursos a disponibilizar e assim prosseguir na “luta contra a pobreza”como política de equidade manifesta no grau de recursos a transferir.

No entanto o limiar de rendimento e privação de recursos tem um sentido e significado social muito diferenciado se o confrontarmos com as diferentes realidades e contextos onde é verificável.
É bem patente o paradoxo da “pobreza” se enraizar e internalizar com o aumento de rendimento ou acesso a bens ou serviços porque as reais problemáticas são outras. A carência de rendimento e privação são em muitos casos a manifestação aparente de outras necessidades ou estruturas disfuncionais do indivíduo, das famílias ou dos grupos que lhes determinam o nível de rendimentos e recursos.
Nesta perspectiva a pobreza com conceito centrado na variável rendimento não é explicativo e operacional gerando uma amálgama incompreensível de realidades e tipologias diferenciadas de carências, necessidades e problemas sociais de natureza
 não comparável conceptual ou estatisticamente.
A consequência do consenso difuso sobre a natureza da “pobreza”é a dificuldade de formular estratégias diferenciadas e à medida da configuração real das problemáticas sociais.
A necessária mudança de perspectiva implica uma arquitectura ou desenho de medidas de intervenção com elevada especificidade e especialização focadas na segmentação de muitas das problemáticas genericamente englobadas na “pobreza” e que por isso são alvo de intervenções generalistas e muitas vezes descontextualizadas.
Existe na sociedade portuguesa um conjunto de problemáticas sociais com uma expressão visível na carência de rendimento e privação de recursos mas que resultam de “endemismos” sociais que se vão perpetuando; que têm uma dinâmica própria sem conexão directa com o nível de rendimento e o acesso aos recursos.
São, nomeadamente, problemáticas ligadas ao alcoolismo ou outras dependências, comportamentos de risco ou desviantes, implosão familiar e sua desconstrução, situações de risco no meio natural de vida, patente sobretudo para menores e idosos, doença mental e correspondente isolamento relacional, de emergência como separações ou desemprego sem protecção para episódios ou surtos de eventos incontroláveis pelos próprios, histórias de vidas traumáticas ou desajuste comportamental e de interacção social, estilos de vida com risco acrescido como o endividamento, por exemplo.
Muitas destas questões, na dramaticidade das situações reais em que ocorrem, relacionam-se com a incapacidade de resposta dos serviços, tal como estão estruturados resultando a situação real de carência e “pobreza” da ineficiência e ineficácia da rede de respostas instaladas. Esta situação é particularmente evidente no caso dos sem-abrigo onde a prevalência da doença mental é muito determinante e em que a s respostas deveriam estar coordenadas com forte componente clínica e reabilitativa. É também o caso do alcoolismo geracional, motivador de múltiplas problemáticas associadas de maus tratos e abandono escolar, disfuncionalidade familiar, violência doméstica, desemprego entre muitas outras. Situação que é extensível a muitas outras problemáticas.
Poderíamos falar da rede quase inexistente de apoio e sustentação aos portadores de doença mental após o internamento e que vão reproduzindo também geracionalmente situações da designada “pobreza”.

Para além destas tipologias existe um outro campo globalmente designável de “comportamentos disfuncionais e problemáticas sociais associadas” que relevam da persistência de um muito profundo défice de competências pessoais, relacionais, sociais, de qualificação e escolarização que se traduzem numa iliteracia social transversal com uma relevância estatística muito significativa no nosso país. Estes grupos são beneficiários, por vezes durante períodos de tempo muito longos, de muitas das medidas redistributivas ou inclusivas, como o RSI, mas cuja identidade se estruturou nesse posicionamento de tal modo que apresentam uma forte resistência à alteração desses padrões comportamentais.
Para tal seria necessária uma abordagem inovadora dos serviços que definissem estratégias de continuidade, proximidade e intensidade na mobilização e contratualização de percursos de vida e projectos de mudança pela motivação e investimento mútuo.
Seria necessário direccionar serviços e respostas para a lógica do co investimento responsabilizante numa plataforma concertada entre serviços, de modo a suportar a progressividade na continuidade das mudanças individuais, de família e de grupo.
Outro endemismo em que o conceito de pobreza se esgota na especificidade e configuração do problema é o das gerações de transição, sobretudo os idosos e também as mulheres, para quem o estado democrático tem investido nas políticas redistributivas para colmatar a inexistência histórica do estado social.

De modo global o que se evidencia é o desfasamento entre as necessidades sociais e a resposta dos serviços tal como estão estruturados persistindo, sem resposta nem mudança, as problemáticas sociais para os quais deveriam produzir resultados. A carência de e privação de recursos é como estas situações se apresentam socialmente mas a problemática é de uma outra ordem que não a da “pobreza”. São problemáticas específicas, com naturezas ligação ao desenvolvimento da personalidade, estruturação familiar, orientação social e vocacional, aprendizagens e vivências base, competências e iliteracias de diversa ordem.

O enfoque no desenvolvimento social com investimento significativo em instrumentos de mudança como serviços especializados que produzam verdadeiro impacto social, poderá ser extensivo a todos os domínios centrando nos diversos serviços (saúde, educação, emprego, formação, justiça) a lógica do desenvolvimento do “capital social” dos seus beneficiários. Esta reconversão dos serviços deverá assumir-se como investimento numa “economia de serviços para o desenvolvimento social”.

A “pobreza” seria então localizável e mensurável na capacidade instalada dos serviços e o seu potencial gerador de oportunidades de mudança e retorno em termos de valor social, gerador de oportunidades colectivas e individuais de acesso aos recursos, ao bem-estar e coesão social, qualidade de vida e cidadania. Como investimento a realizar nas competências e recursos de todos os intervenientes, a lógica contratual e de responsabilidade mútua não assistencial deveria tornar-se tónica.

Em Portugal, a dimensão onde são verificáveis índices de rendimento e recursos bastante deficitários em relação ao limiar europeu de “pobreza” (Taxa de pobreza Monetária na EU) são os derivados do rendimento gerado pelo trabalho ou remuneração similar. De facto aceitando este limiar como indicador de “pobreza”, estamos numa situação crítica embora com clara recuperação nos últimos anos (Farinha Rodrigues, 2009) com consequências sociais profundas e marcantes no percurso actual de vida de muitos cidadãos.
Mais uma vez, focalizar a “pobreza” como expressão da variável do rendimento e recursos na análise da sua distribuição em função da norma (valor médio) é localizar a problemática da pobreza nas margens da sociedade onde grau de afastamento da média de rendimentos é negativo.
Esta perspectiva desfoca dos factores estruturais da nossa economia que determinam o acesso ao rendimento: baixa produtividade associada ao nível de qualificações, de escolarização ou talvez mais ainda à organização e gestão dos processos e organizações produtivas, baixa competitividade pela falta de inovação e conhecimento avançado, híper regulamentação e asfixia da iniciativa e empreendorismo, rigidez jurídica e contratual e sobretudo a desvalorização do trabalho e do trabalhador como factor chave de produção e do valor acrescentado.
Portugal segue, nesse aspecto a tendência dominante a nível mundial do “dumping” do valor social do trabalho representando este um custo cada vez menor no produto e nos custos sociais nele incluídos.

A inversão de perspectiva, da problemática da “pobreza” para a do desenvolvimento, coloca a questão do patamar de desenvolvimento social como tradução da componente de investimento no “capital social”, ferramenta de competitividade e sustentabilidade económica global.
Assim é limitado o sentido de uma “luta contra a pobreza” focalizada em variáveis estáticas de rendimento e recursos ou dito de outra forma, centradas em políticas redistributivas, circunscritas e limitados à esfera de apropriação social do rendimento.
O desenvolvimento social implica, ao contrário a expansão da criação de valor concertando as esferas do investimento nas economias de rendimento inclusivo, da intervenção da administração central e local e um novo perfil de políticas sociais activas no interface entre o social e económico.
A criação de rendimento a partir do trabalho e da sua qualificação e valorização enquanto variável determinante do desenvolvimento pode criar um significativo impacto social no acesso a oportunidades de criação de rendimento a partir das competências, qualificações, inovação e competitividade.

Bibliografia referida:

Bruto da Costa, Alfredo (cord.), Um olhar sobre a Pobreza, Edição Gradiva, 2008, Lisboa
Farinha Rodrigues, Carlos; “A pobreza em Portugal”, in Revista Portefólio, Fundação Eugénio de Almeida, 2009, Évora

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